Na casa de meu Pai há muitas moradas

A reflexão escatológica, ou simplesmente, sobre como serão os últimos acontecimentos, talvez seja uma das maiores curiosidades do ser humano, haja vista que nossa capacidade intelectual não é capaz de sequer se aproximar do mistério trinitário.

O primeiro passo para se afastar do risco de que esse pensamento nos traga uma paralisia pela nossa incapacidade é pensar no campo da ação: o que eu preciso fazer para alcançar o que Deus preparou para nós?

Nesse aspecto, a Revelação Divina (Escrituras, Tradição e Magistério) já nos dá muitas contribuições e eu queria deixar aqui uma reflexão que tenho feito, que provavelmente já deve ter sido escrita por alguém, haja vista a grande quantidade de teólogos e santos que contribuíram com alguma reflexão a respeito. Mas, enfim, prefiro correr o risco de ser repetitivo ao de não a fazer.

Ora, não havia mais vinho, pois o vinho do casamento tinha-se acabado. Então a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”. (…) Havia ali seis talhas de pedra para purificação dos judeus, cada uma contendo de duas a três medidas. Jesus lhes disse: “Enchei as talhas de água”. Eles as encheram até a borda. Então lhes disse: “Tirai agora e levai ao mestre-sala”. Eles levaram. Quando o mestre-sala provou a água transformada em vinho – ele não sabia de onde vinha, mas o sabiam os serventes que haviam retirado a água – chamou o noivo e lhe disse: “Todo homem serve primeiro o vinho bom e, quando os convidados já estão embriagados serve o inferior. Tu guardaste o vinho bom até agora!”. (Jo 2,3; 6-10)

É aqui que entram as talhas. Talhas são objetos úteis para armazenar água. Se o próprio Jesus é fonte de água viva, como disse à samaritana (Capítulo 4, do Evangelho de São João), parece bem razoável que guardar essa água seja necessário. Há inúmeras citações relacionando a água a Jesus e ao Espírito Santo, mas fiquemos apenas com esta da samaritana.

Então Iawheh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas
narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente. (Gn 2,7)

Quando nascemos, fomos transformados nessas talhas. Nós, que não éramos nada, viemos a este mundo por pura graça divina. E é para Deus que devemos voltar.

Mas Deus é tão bom que nos deu a liberdade para receber ou rejeitar essa água desde sempre derramada sobre Seus filhos. Infelizmente, muitos optam, conscientemente, por quebrar a sua talha e viver fora da graça. Não é sobre esses que quero falar.

Quero falar sobre os que lutam, do nascer ao pôr do sol, para encher sua talha, e, de preferência, alcançar a vida eterna com a talha cheia até a tampa, para que Jesus transforme tudo em vinho novo. 

Qual é o problema para essas pessoas? O primeiro são os buracos que se formam ao longo da vida. No Batismo os buracos são consertados e recebemos uma camada de proteção, mas os dias passam e os pecados vão furando a talha. Quando nos damos conta (muitos nem se dão conta, o que é pior), nossa talha está toda furada e a água (graça) recebida escoa livremente. 

Como consertar esses buracos? Palavra de Deus, oração, jejum, penitência e, principalmente, frequência aos sacramentos, especialmente à Confissão e à Eucaristia. Estes tampam nossos buracos e ajudam a proteger a parede da talha.

Pensando numa “estratégia de conservação” da talha, o ponto de partida é lutar contra o pecado. Os pecados vão estragando nossa talha. Assim como na vida real, os remendos vão deixando as paredes mais fracas. Se as paredes estiverem fracas, na hora de transformar água em vinho, o vinho novo romperá as paredes e tudo se perde. Por isso acredito que, mesmo que morramos em estado de graça, precisaremos passar pelo purgatório para reforçar as paredes da talha. Passar pelo esforço que não fizemos aqui para impedir os buracos. Esse é um dos motivos, o outro veremos mais adiante.

Certo homem de posição lhe perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para herdar a vida eterna?” Jesus respondeu: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão só Deus! Conheces os mandamentos: Não cometas adultério, não mates, não roubes, não levantes falso testemunho; honra teu pai e tua mãe”. Ele disse: “Tudo isso tenho guardado desde a minha juventude”. Ouvindo, Jesus disse-lhe: “Uma coisa ainda te falta. Vende tudo que tens, distribui aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me”. Ele, porém, ouvindo isso, ficou cheio de tristeza, pois era muito rico.
(Lc 18,18-23)

Muito bem, você conseguiu vencer os pecados mais graves, aqueles que furam sua talha. Aí você percebe que sua talha está sempre transbordando. Seria por que você está recebendo graças em excesso? Não!!! É porque você carregou um monte de pedras na sua talha que estão tomando espaço da água.

Ah essas pedras … Como são difíceis de tirá-las. São pecados veniais acumulados e imperfeições. Alguns, fruto, inclusive, do seu sucesso em não deixar abrir buracos na talha. Já entendeu quais são?

Sim, são aqueles ligados à soberba, à vaidade, ao egoísmo, aos apegos, aos vícios… Quantas vezes nos achamos melhores que os outros porque rezamos mais tempo, porque estamos dentro da Igreja, porque fazemos umas doações, por que vamos à missa? “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Eclesiastes 1,2).

Nosso caminho de santidade esbarra frequentemente no pensar que somos merecedores da salvação por nossos próprios méritos. Vaidade das vaidades.

Essas pedras que carregamos são o segundo motivo que nos leva ao purgatório. Precisamos quebrá-las. Não podemos entrar na vida eterna carregando peso, com sentimentos que nos prendem à vida terrena. Qual o remédio? Buscar as virtudes, aumentar a dose da oração, do jejum e da penitência e a frequência aos sacramentos. 

Não conheço um santo que ao fazer isso não tenha aumentado seu amor por Deus e pelo próximo. Aliás, esse é o segredo para aumentar a nossa talha. Sim, umas pessoas chegarão lá com suas talhas furadas, outras perderão pedaços das suas, outras, ainda, cheia de pedras. Mas haverá aquelas que, ao levarem uma vida em busca da santidade, conseguirão a graça de que o oleiro aumente a sua talha. Muitos, inclusive, os chamados santos, já experimentaram, em vida, a transformação da água em vinho, em grandes talhas. Nós também podemos experimentar isso.

Dizem que no céu há muitas moradas. Todos seremos felizes com as talhas que teremos. O importante é chegarmos com elas cheias. Não sabemos a diferença da felicidade, se é que existe diferença, entre talhas de diferentes tamanhos. Como nos ensina Santa Teresinha, todas as flores exalam seu perfume e exibem sua beleza. A nós não cabe definir nossa morada, apenas nos deixarmos moldar pelo Senhor da Criação.

E você? Como está? Sua talha é grande ou pequena? Poucos ou muitos furos? Carregando muitas pedras?

Que o Espírito Santo nos conceda a inteligência e a sabedoria para identificar os furos e as pedras, bem como a fortaleza para seguirmos firmes no propósito de não mais pecar, de nos libertar dos nossos apegos e de buscar as virtudes.  

Assim, estaremos prontos para nos aproximar de vivermos um amor esponsal com Nosso Senhor Jesus Cristo.

Que a Santíssima Virgem seja nosso modelo e, em sua infinita bondade, interceda por nós.

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